Sim, Olga rasgou as fotos. Todas elas! Mas preservou os porta-retratos. Disse que conteve seus impulsos de atirá-los à sorte de paredes de gesso. Argumentou que eles não poderiam ser culpabilizados pelas mentiras que sustentaram durante esses anos em suas frágeis e baratas molduras.
Ao acender o próximo cigarro, lamentou cada vivência que fora reduzida drasticamente a nada. E depressa consertou:
_ Não! “Nada”, não. “Nada” é um estágio promissor, na verdade. É uma estaca perpendicular cheia de possibilidades. É um vir a ser. “Nada” talvez seja até mais bonito, neste caso. Sem qualquer mancha, estrago ou vestígio. Se fosse “nada”, significaria que não haveria toda essa dor e desilusão. Lamento as expectativas, obviamente. No entanto, aceito que serviu a mim e às crianças. Não concordas?
Seu único retorno, o reposicionar da cabeça de seu dócil cão, Raj, acompanhou um breve latido instantes depois. Como quem fora salva repentinamente de um monólogo, Olga fitou Raj e continuou:
_ Eu sei – baforou a fumaça. E tenho dito: Embora seja a feminilidade uma dádiva, ser mulher tem um significado social fastio. Como se nascêssemos premiadas com um câncer cultural. Tolas! Todas somos tolas em alguma medida. As que escolhem por dinheiro, sofrem. As que escolhem por amor, sofrem. As que não escolhem, ou abdicam, sofrem. Todas elas sofrem quase que gratuitamente, negligenciadas vociferando afirmações constantes num labirinto, a deriva de encontrar qualquer saída insopitável. Cada escolha um jazigo, poucas se realizam sem empecilhos.
Observei atentamente àquela cena. Dei-me conta de que Olga tinha alguma razão naquele exato momento. Pois veja, eu, uma senhora de 77 anos, posta num jardim a espiar dramas pelos vidros de portas alheias. Aliás, dramas convertidos à borrões, por méritos de minha miopia. Senti-me tola!
Ah, Olga! Tinha tanto de mim. Ouvi-la era como se deparar com uma versão jovem de mim. Talvez ambas tivéssemos como hobby a tendência de tecer e abrigar filosofias inóspitas a humores tempestivos. Hesitei, mas não por muito tempo. Denunciada aos latidos, toquei sua campainha.
Uma mulher magra, de olhos fundos e cabelos relativamente despenteados apareceu à porta. Como vestígios de uma boa anfitriã encontrei o que restou num sorriso plástico que se esforçara numa tentativa de cumprimento:
_ Bom dia – protegia os olhos do sol com sua pequena mão. Como posso ajudá-la?
Desapontada, tirei meus óculos escuros a fim de ser melhor notada. Finalmente Olga exclamou:
_ Tia Marta! Que saudades!
Recebi um abraço acalentador que me aqueceu a pele por baixo do tecido e também, minha alma; como se não tivesse sido abraçada por todos esses anos. Aquela garotinha que a meu modo criei, era agora uma mulher. Seu abraço era tão firme e cheio de segurança e poder. Quase que sem vestígios de uma pequena garotinha que surgia à minha cama repentinamente e me abraçava cheia de medos em madrugadas chuvosas.
Depressa entramos e o chá estava posto. Lembro-me de ter feito introduções baratas, reparando em sua mobília, elogiando sua louça e criticando pequenas escolhas, feito a mãe simbólica que me permiti ser. Na verdade, me peguei reproduzindo o que aprendi – e tanto criticava em pensamentos.
Dentre falas corriqueiras e atualizações de tramas familiares, ela me lembrou que era o meu aniversário. Disfarcei as lágrimas. Mas não com perfeição, diante de Olga. Eu era uma boa atriz diante de muitos. Mas não diante dela. Sua sensibilidade fazia de mim uma péssima atriz!
Eu era mestra em lidar com situações robóticas e automáticas. Especialista em comportamentos humanos superficiais e condicionada à suas reações prontas. Mas Olga, desconcertava minha práxis. Sobretudo, a atenção gratuita dada a mim. Além de enxergar-me, ela via a mim. E não por gratidão, mas por essência. Aniversariante, lá estava eu – bagunçada –, mais uma vez, por Olga. Quisera eu ter méritos por sua personalidade intrigante, hermética e absconsa. Mas Olga era dona de si e auto moldada.
Seu marido chegou cumprimentando-a com um apaixonado beijo. Talvez estivesse tão surpreso ao me ver, quanto eu a ele. Repentinamente senti-me tão ridícula quanto achava minha mãe, quando eu tinha a idade de Olga. Acometida por um flash de lembrança, provavelmente fiquei em silêncio tempo suficiente para que Olga e seu marido se atualizassem de suas curtas ausências pela manhã.
Era eu um projeto tão promissor – mergulhei. Um punhado de décadas depois, como num sopro, e quase que fora de meu controle, tornei-me todas as versões que odiava em minha mãe. Flashes distantes foram revividos em lacônicos pensamentos. Em meados dos anos 60 – lembrei-me por um instante – era corriqueiro sentir o sol aquecendo meus cabelos em tardes ativistas. Num destes flashes eu batia a porta ao sair pra uma marcha qualquer de movimento social e recordo-me de ouvi-la gritar de longe “Marta, tu não arrumarás marido com esta vida”.
Diabos! – retornei. Toquei a campainha pronta a consolar Olga por qualquer desventura em seu casamento. Introsca e embebida de presunções, só então reparei nas fotos rasgadas. Senti-me ainda mais tola que antes, e mais míope que nunca ao constatar as reais subjacências de seu monólogo que tortamente bisbilhotei. Este em medida alguma estivera relacionado ao seu jovem casamento.
Investigando melhor em prosa, despida de projeções e subjetivismos, pude descobrir sua experiência como pediatra voluntária na cidade Siem Reap, no Camboja. E o fim de seu vínculo por motivos genéricos como tramas internas, disputas de poder, e a não renovação de seu contrato justificada por ações machistas e misóginas da gestão local. A queixa de seu fardo feminino era puramente de motivação e angústia profissional. E eu, como fruto das vivências de minha mãe, converti valores pessoais em projeções sociais sem me dar conta. De certo muito me distanciei do âmago daquela jovem ativista sem temores dos anos 60.
Dei-me conta de que nunca havia chorado tanto em outros aniversários. Senti que envelheci ali mesmo; naquela sala, ao balançar da cauda do cão, bebendo aquele mesmo chá por muitos anos. Minha “garotinha” Olga, recebia à porta suas próprias “garotinhas”. Desejei num pensamento sorrateiro que ela não perdesse sua ativista interior. Que não envelhecesse repentinamente. Bebendo chá em seu aniversário sem se dar conta, acometida por minhas projeções prontas.
**Chinaira Raiazac**